Cascas sobre o papel: memórias do dilaceramento
Vera Casa Nova
" O ensaio tenta mostrar como o autor Georges Didi-Huberman, na obra Écorces (Cascas), nos apresenta sua experiência de rastros (W. Benjamin) e sua interpretação do dilaceramento nos campos de Auschwitz-Birkenau. Trata-se de uma narrativa de ruínas pela palavra e pela imagem fotográfica. Escritura que se encontra entre a pesquisa histórica e a empresa literária autobiográfica."
"Nas ruínas a história sobrevive. Procurá-las é tarefa do historiador. Sobretudo se
esse historiador e narrador for um trapeiro (chiffonnier), aquele que reúne trapos, farrapos de fatos. Imagens de imagens."
"Palavra que vem por meio das imagens."
" Cicatrizes de acontecimentos. Os debaixos das cascas e a vertigem da memória.
Do que se esconde e do que se manifesta na superfície. Ora, 'quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado tem de se comportar como um homem que escava'”.
" Substância sobre substância para mostrar os debaixos da memória, esse labirinto
repassado pelos discursos."
" Ver através dos rastros o inimaginável. Narrar o impossível, o inimaginável? Eis o desafio: 'nunca apagar os rastros', 'nunca deixar cair no esquecimento', narrar as ruínas pela palavra, pela imagem. Narrador sucateiro que recolhe o que é deixado de lado, o que não tem sentido (aparente), 'algo com que a história oficial não sabe o que fazer', mas que deve ser transmitido e lembrado como transmissão simbólica."
" Memória, rememoração, reminiscência, e estamos diante de Mnemosine, a deusa
da reminiscência, guia-mestre, que transmite os acontecimentos, de geração em geração – a musa entre outras musas da narrativa. Mas outra possível Mnemosine? Aquela da memória-montagem, da escritura-montagem, da fotomontagem. Marcas da escritura do desastre, da escritura do epicentro: as fotos como testemunhas do sofrimento reduzidas agora ao silêncio."
" Para o narrador-fotógrafo, a matriz visual deve multiplicar as possíveis leituras. As
fotos que são dispersas correspondem também à disposição textual. A errância, a dispersão fazem parte da cena dramática em que o narrador se situa como visitante de um lugar de barbárie tornado lugar de cultura para visitantes/turistas."
" O narrador chama a atenção para o 'olhar arqueológico' como a capacidade de
'comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter
desaparecido', e é pela fotografia do presente que isso é ressaltado."
"Nunca poderemos dizer: não há nada para ver, não há mais nada para ver. Para saber desconfiar do que vemos, devemos saber mais, ver, apesar de tudo.
"Em francês, os etimologistas afirmam que a palavra écorce representa a extensão medieval do latim imperial scortea, que significa 'casaco de pele'. Como se para tornar evidente que uma imagem, se fizermos a experiência de pensá-la como uma casca, é ao mesmo tempo um casaco – um adorno, um véu – e uma pele, isto é, uma superfície de aparição dotada de vida, reagindo à dor e fadada à morte [...]
[...] os latinos inventaram uma segunda palavra, que estampa fielmente a outra face da
primeira: é a palavra liber, que designa a parte da casca ainda mais propícia que o próprio córtex a servir de suporte para a escrita. Nada mais natural, portanto, que ela tenha dado seu nome a coisas tão necessárias para inscrever os farrapos de nossas memórias: coisas feitas de superfícies, de lascas de celulose decupadas, extraídas das árvores, onde vêm reunir-se as palavras e as imagens. Coisas que caem de nosso pensamento e que denominamos livros. Coisas que caem de nossos dilaceramentos, cascas de imagens e textos montados, fraseados em conjunto."
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